O Portal JWS está publicando todas as entrevistas da coleção de livros “Memória Paranaense”. Aqui está a de Helena Kolody.
.
.
.
.
Helena Kolody (1912-2004): Um dos nomes mais importantes da poesia no Paraná. Ficou marcada principalmente pelo haicai, uma forma poética de origem japonesa, cuja característica é a concisão, ou seja, a arte de dizer o máximo com o mínimo. Foi a primeira mulher a publicar haicais no Brasil, em 1941. Eleita para a Academia Paranaense de Letras, passou a ocupar a cadeira n.º 28. Foi admirada por poetas como Carlos Drummond de Andrade e Paulo Leminski, com quem teve uma grande relação de amizade pessoal e literária. Gravação de 1998.
.
Gravação do programa “Memória Paranaense” em 1998 com Helena Kolody. Ao centro o escritor Roberto Gomes.
.
José Wille – A sua família é ucraniana…
Helena Kolody – Meu pai veio em 1911 com 13 anos, porque meu avô tinha morrido numa epidemia de cólera e minha avó tinha mais um filho de quatro anos e uma filhinha de alguns meses e não quis ficar sozinha na Ucrânia, nem tinha condições. Como a família dela imigrara para o Brasil, levada pela propaganda que se fazia do país, a terra onde corriam rios de leite e mel, onde tudo era fácil, ela veio junto com os filhos e lutou muito. Meu pai, desde os 13 anos, já trabalhava para ajudar a família. Minha mãe veio mais tarde para o Brasil. Meu avô materno era administrador de uma herdade e, lendo os jornais, viu que estava se aproximando uma guerra e, como tinha quatro filhas e só um filho, na época de ser convocado, não quis que o filho morresse na guerra. Então, com a grande propaganda do Brasil, veio como imigrante, em 1911. Minha mãe, a dona Vitória, era uma moça de dezoito anos quando conheceu meu pai, que já estava com vinte e nove, apaixonaram-se e casaram-se em janeiro de 1912. E eu nasci em outubro daquele ano.
José Wille – A vida para eles começou no interior do Paraná, na cidade de Cruz Machado…
Helena Kolody – Em Cruz Machado. O papai trabalhava como agrimensor prático com o doutor Artur Martins Franco, que estava abrindo uma estrada, e lá conheceu a minha mãe, que morava com a família na cidade.
José Wille – Foi um começo de vida muito difícil – não existia energia elétrica e água encanada?
Helena Kolody – Era tudo muito difícil, tudo muito primitivo.
José Wille – O incentivo ao estudo e à leitura vinha de seus pais?
Helena Kolody – Muito! Eu me lembro ainda menina, em Três Barras, onde meu pai foi comerciante – à noite, o lampião no meio da mesa, mamãe de um lado e papai do outro a lerem. Lembro que ela lia em ucraniano, tanto que eu sei de cor algumas coisas do Tará Schewtchenko, considerado até hoje o maior poeta ucraniano. E, como tinha sede de leitura também, aprendi com ela.
José Wille – Quantos irmãos eram?
Helena Kolody – Na verdade, nós fomos seis. Um morreu bem pequenininho, de incompatibilidade de fator RH, lá mesmo em Cruz Machado. Depois, quando já morávamos em Rio Negro, éramos eu, as duas irmãs e o José, e mamãe teve mais um menininho que morreu com alguns meses, no desmame, com infecção intestinal. Viemos para Curitiba, três mulheres – eu, Olga e Rosinha – e o rapaz que era o último, o José. Aqui, nós três fomos normalistas, professoras. José se formou em Engenharia e trabalhou em Presidente Prudente, no estado de São Paulo, até se aposentar; depois, veio para cá. Há alguns anos, tive a infelicidade de perder a mais nova, a Rosa, e o José também.
José Wille – Como foi a sua infância no interior?
Helena Kolody – Foi uma infância linda, a gente tinha o mundo para brincar! Brincava no quintal, na rua, via os passarinhos, subia em árvores… Essa vida mais sadia… Andava no rio, atravessava o rio…
José Wille – Você estudou em Rio Negro. Era uma aluna muito dedicada?
Helena Kolody – Muito! Eu tinha sede de estudar e, em Três Barras, não havia uma escola que prestasse, quem dava aula era a filha do coletor. Minha tia, que era professora primária, veio passar o Natal conosco e foi tomar minha lição, mas eu não sabia nada. Então, ela disse para o meu pai que eu estava perdendo tempo naquela cidade e que eu poderia ir com ela para Rio Negro, se ele permitisse. Fui e fiquei três anos morando com ela em Rio Negro, para tirar o primário.
José Wille – O primeiro livro que você ganhou é uma boa recordação…
Helena Kolody – A gente começou a aprender a ler com as coisas que a minha tia escrevia no quadro e a gente copiava. Então, ela me trouxe a cartilha, e lembro que tinha uma figura colorida na primeira página, uma menina e um gatinho. A letra era cursiva e dizia “Uma menina e um gatinho. O gatinho é da menina. A menina chama-se Laurita. Como se chama o gatinho? O gatinho chama-se Neve”. Veja que eu tinha sete anos e hoje eu tenho oitenta e cinco e não esqueço esta primeira página e essa primeira leitura, de tanta fome que eu tinha de ler. Aprendi a ler em um mês!
José Wille – E gostava também da biblioteca…
Helena Kolody – Mais tarde, quando aprendi a ler, a biblioteca de Rio Negro, a biblioteca de todas as escolas e, aqui, a Biblioteca Pública do Paraná sempre foram a minha fonte de leitura, pois eu não podia comprar livros. Hoje, tenho uma biblioteca razoável, mas, na época, não podia comprar livros, e adorava ler. Então, as bibliotecas serviam muito para a gente. E, em Rio Negro, eles tinham aquela coleção de Thales de Andrade, das grandes lendas da humanidade, trocadas em miúdos, em livrinhos muito bem impressos, coloridos. Aquelas histórias que a gente lia e não esquecia mais, porque tinha figuras também: “A Rosa Mágica”, “As Três Cabeças de Ouro”… Grandes lendas de antigamente, todas em linguagem para criança.
José Wille – Na sua juventude, o cinema estava chegando, mas você gostava mesmo era dos livros…
Helena Kolody – Muito. Mas ia também a festas. Quando era mocinha, ia passar as férias em Rio Negro. Eu era normalista e o meu tio Antônio Procopiak era um pé-de-valsa, gostava de bailes. Até cheguei a fazer parte de um grupo de Carnaval – ganhamos um prêmio, as ciganas cantando “Ramona”… Quer dizer, participei dessas coisas também.
José Wille – A sua chegada em Curitiba com a família foi com que idade?
Helena Kolody – Nós viemos para cá em 1928. Eu tinha 14 anos.
José Wille – E o seu pai, aqui, tornou-se comerciante.
Helena Kolody – Na rua Itupava esquina com a Sete de Abril ele abriu uma casa de comércio, que durou alguns anos. Ele vendia fiado, principalmente para os amigos. E acabou precisando fechar o negócio, porque, quando eles recebiam, iam comprar em outra parte; quando não tinham, compravam fiado lá em casa.
José Wille – Como era a Itupava, essa parte de Curitiba, naquela época?
Helena Kolody – O quadro urbano acabava na rua Ubaldino do Amaral. Não havia luz elétrica, nem água encanada, nem calçamento. A Itupava era uma rua barrenta e passava do lado de um riozinho fundo, onde uma vez escorreguei e caí dentro. A gente estudava à luz de lampião e, quando saíamos à noite, vínhamos em uma escuridão total, porque na rua não tinha luz elétrica.
José Wille – Era uma região de chácaras este primeiro Alto da Itupava?
Helena Kolody – É isso. Tinha chácaras e tinha casas isoladas mesmo, casas simples com quintal etc.
José Wille – Que descrição você faz de Curitiba dessa época – as décadas de 20 e 30?
Helena Kolody – Era uma vida sossegada, uma vida boa. Todo mundo tinha frutas e verduras no quintal. A gente chegava da escola e a mãe dizia “Agora você vai fazer uns canteirinhos para plantar alface, semear não sei o quê…”. E, na hora do almoço, “vai buscar um pezinho de alface para fazer uma salada”. Tudo era fresquinho…
José Wille – Sua preocupação com o que seu pai esperava era muito grande – ou seja, a necessidade de estudar para corresponder à expectativa que ele tinha…
Helena Kolody – Ele fazia questão que a gente estudasse. Ele lutou muito e, depois que fechou o comércio, teve de ir embora, para trabalhar como contabilista no escritório da madeireira Lamber, onde meu tio João era gerente. Era a maior serraria do Sul do Brasil – dia e noite a serraria trabalhando e os vagões carregados de tábuas sendo levadas para São Paulo, para Santos, e depois embarcadas para o exterior. O titio o levou e a mamãe ficou conosco. Então, a gente estudava e eu pensava “Tenho que dar para o papai essa alegria”, porque ele queria que nós estudássemos. Os nossos vizinhos ucranianos diziam ao papai “Helena tem que trabalhar na fábrica” – pois trabalhavam na fábrica de fitas – mas papai dizia “Não! Ela vai estudar”. Então, havia esta persistência do papai, de fazer questão dos estudos… Ele ficava tão feliz de eu tirar boas notas! E as minhas notas foram as maiores e isso me serviu mais tarde.
José Wille – Você chegou a ser nomeada professora por esse motivo: pelas melhores notas que tinha na sua turma.
Helena Kolody – Na Escola Normal de Ponta Grossa, fui nomeada por causa das notas. Escrevia muito e os jornais tinham uma página literária. O filho do cônsul da Itália na época publicava o que os jovens escreviam em uma revistinha chamada “O Garoto”. Os jovens se reuniam muito, conversavam, e havia esta oportunidade de a gente publicar as bobagens que escrevia, só para dar risada. Hoje, por exemplo, os jornais não têm uma página literária, mas antigamente sempre tinha uma na qual todo mundo podia colaborar.
José Wille – A poesia tinha um valor maior?
Helena Kolody – Tinha um valor maior. Hoje, eu acho que o mundo é muito racional, muito tecnológico. Não sei se é por causa da premência do excesso de população, não sei o que é…
José Wille – Nas décadas de 20 e 30, era comum a reunião familiar ou de amigos para discutir literatura, para cantar?
Helena Kolody – Era muito comum. Informalmente, nos reuníamos com o professor Calderari, na rua Comendador Araújo, todos os domingos, no Salão Nobre do Colégio, a partir das dez até o meio-dia. E um puxava uma poesia, outro dizia outra, um trazia o jornal e dizia “Olha, eu li isso, li aquilo.”… Então, era uma conversa e, às vezes, um subia na tribuna para recitar uma poesia… Era tudo uma brincadeira.
José Wille – Essa primeira publicação, “O Garoto”, reunia esses jovens?
Helena Kolody – A poesia “A Lágrima”, por exemplo, era uma coisa chorosa, mas havia uns que faziam brincadeiras com ela. Um deles – não sei quem, por que se usava pseudônimo – caçoava daquela exigência de métrica na poesia, no soneto, desta forma: “A gente sempre era pobre idiota. General marinético, pó de pedra, flores singélicas que a maldade medra, vidros moídos fritadas de compota…”. E acabava assim: ”No azul da mata navegando a esmo, nas profundezas de Horácio Paixão, não compreenderam? Pois é isso mesmo!”. Então, uma coisa bem maluca.
José Wille – Mas foi grande uma emoção ter o seu primeiro trabalho publicado…
Helena Kolody – Meu primeiro trabalho publicado! Infelizmente, caí na ingenuidade de emprestar. Muita coisa perdi por emprestar aos outros…
José Wille – Aos 19 anos, surgiu a ideia de publicar seu primeiro trabalho?
Helena Kolody – O meu primeiro livro, “Passagem Interior”, eu pensava em publicar, porque meu pai ia fazer 60 anos e queria lhe fazer uma surpresa. Naquele tempo, a Escola Técnica do Paraná tinha um professor, o Lauro Medeiros, que era muito amigo dos jovens escritores. Então, fui até ele perguntar o que precisava para publicar meu livro de poesias. Os alunos aprendiam artes gráficas, mas produziam apenas um mostruário. Como eu queria que ficasse perfeito, eu acompanhei o processo, inclusive comprando o papel – pergaminho de quarenta quilos, sem marca d’água. Fizeram quatrocentos livros e me enviaram para outro lugar, para costurar e fazer a capa – que foi obra de minha amiga Euvídia Leite.
José Wille – E seu pai gostou do presente?
Helena Kolody – Ele já tinha morrido e não chegou a ver o livro. Quando eu estava preparando o livro, meu pai teve um enfarte e morreu. Então, não quis publicá-lo. Mas me convenceram a publicá-lo, em memória dele. O livro diz assim “Sobre o teu túmulo, pai, a coroa de flores com que sonhei adornar teus cabelos brancos.” Eu queria festejar os 60 anos dele, então pus sobre o túmulo a coroa de flores.
José Wille – A sua grande paixão foi a carreira como professora?
Helena Kolody – Nasci professora e sempre amei ser professora! A poesia foi um canteiro de flores que nasceu à beira do meu caminho do magistério.
José Wille – Foram 32 anos na sala de aula…
Helena Kolody – Eu sempre procurava misturar a poesia nas coisas de escola, dar um jeito… Quando fui professora em Jacarezinho, nós levamos uma peça de teatro. Sempre a poesia era misturada com literatura.
José Wille – Havia a preocupação de trazer o teatro e outras atividades culturais para junto dos alunos?
Helena Kolody – E até de amar a palavra de outra forma! Em Ponta Grossa, eu fui professora de metodologia e, naquele tempo, as crianças viam as coisas passivamente. Por exemplo, para descrever uma estampa que tem uma menina com uma bola, eu estudei e aprendi um método ativo. Então, chegava na sala, pegava os alunos e dizia “Agora vocês são repórteres e vão fazer uma entrevista, sem barulho”. Eles saíam de lápis e papel na mão e iam entrevistar a diretora, a cantineira ou alguém que estava entrando na escola, uma porção de gente… Enchiam, às vezes, duas páginas e traziam para a sala de aula. A partir daí, comentávamos o que estava errado, o que não estava. E eles ficavam entusiasmados, faziam com prazer uma redação! E eu dizia para as mães “Vejam como isso é muito mais importante do que dizer ‘eu vi uma menina com uma bola…’”. Era uma coisa viva!
José Wille – Sua disciplina principal era Biologia?
Helena Kolody – A principal era Biologia, mas, em Ponta Grossa, eu dava também prática de ensino, metodologia.
José Wille – Foram muitas as cidades do interior onde você trabalhou como professora?
Helena Kolody – Eu comecei trabalhando no primário em Rio Negro e, depois, trabalhei quatro anos no Normal de Ponta Grossa. Voltando para Curitiba, trabalhei de 1937 até 1943, mas eu sempre tive problemas de saúde. Quando tive que tirar a vesícula, eu dava seis aulas por dia e o médico, Dr. Ribeiro de Camargo, me disse que, se continuasse trabalhando daquele jeito, eu ia morrer, pois estava com anemia. O ideal seria ir para um clima quente, onde trabalhasse pouco. Como abriu uma vaga em Jacarezinho, fui para lá – o clima era ótimo e trabalhava só de manhã. Aqui, eu corrigia provas de seis, oito turmas por mês; lá era só uma turminha de trinta alunos.
José Wille – Sobrava tempo também para escrever, para fazer página literária do jornal?
Helena Kolody – Sim. E no interior eles prestigiam a gente. Pensei até que tivesse alguma coisa por eu ser do Sul, mas que nada! É uma gente tão amável…
José Wille – Por que a senhora escrevia usando pseudônimos?
Helena Kolody – Quando eu estive em Ponta Grossa, eles me pediram que eu fizesse a página literária, uma página feminina, e, às vezes, faltava colaboração. Então, eu fazia textos como se fossem de outra pessoa: um trabalho meu em prosa com pseudônimo, uma crônica muito diferente da minha poesia para complementar o espaço.
José Wille – Também houve uma passagem pelo Instituto de Educação.
Helena Kolody – Foram 23 anos, sendo que a maior parte deste magistério foi no Instituto.
José Wille – E, no trabalho como professora, também entrava o trabalho de orientação para essas jovens. Muitas tornaram-se suas amigas?
Helena Kolody – Muitas! Quantas vezes vinham conversar comigo, até os assuntos particulares delas. Chegavam a ir até minha casa para conversar. Essa convivência com os alunos era boa… Acabava dando muitos conselhos, porque gente jovem leva as coisas ao extremo e quase sempre não percebe suas próprias qualidades.
José Wille – Houve uma aluna que pensava em morrer e, lendo uma poesia sua, mudou de ideia?
Helena Kolody – Essa foi, bem mais tarde, lá em casa, com o poema “Prece”, com um imprimatur da Igreja, concedido a textos que devem ser lidos como orações. “Mas, como?”, eu lhe disse, “um poema só é uma oração quando acontece algum milagre”. E ela me contou o milagre: estava com depressão, a ponto de pensar em se suicidar, mas, ao pegar o meu livro “Paisagem Interior”, que eu lhe tinha dado em seu casamento, abriu na página desta poesia: “Concede-me, Senhor, a graça de ser boa, de ser o coração singelo que perdoa, a solícita mão que espalha, sem medidas, estrelas pela noite escura de outras vidas, e tira d’alma alheia o espinho que magoa…”. E fechou o livro, jogou fora o veneno e desistiu de se suicidar. Veja o milagre nisso tudo, pois, se ela tivesse aberto, no mesmo livro, uma poesia que dizia “Apetece-me a paz do solo tumular, para não sofrer e não chorar. Estou cansada, tão cansada de viver…”, ela teria reforçado o seu intento. A partir daí, nunca mais escrevi poesia assim. Hoje, escrevo “Amo a vida. Fascina-me o mistério de existir. Quero viver a magia de cada instante. Embriagar-me de alegria. Que importa a nuvem no horizonte, chuva de amanhã? Hoje o sol inunda o meu dia…”. E também “A vida é linda, mesmo doendo nos desencontros e despedidas…”. Este é o lado positivo de ver a vida, porque, se há momentos difíceis, há também momentos de alegria, de felicidade, de realização.
José Wille – E, considerando também a lição, o exemplo daquilo que se escreve.
Helena Kolody – Isso! Toda a palavra tem um valor presente e um valor futuro, que são incalculáveis. O que se diz não se pode recuperar, o que se escreveu sempre fica… Então, que seja uma mensagem positiva.
José Wille – Com tanta preocupação em dar aula, em escrever e ter uma disciplina tão grande de trabalho, como foi sua juventude? Havia tempo para diversão?
Helena Kolody – Quando eu era normalista, ia para Rio Negro passar as férias na casa da minha tia e de meu tio Antônio, aquele que gostava de festa. E tinha a cunhada dele, que também gostava… Às vezes, acontecia de já estarmos dormindo e, de repente, ela chegava e dizia “vamos ao cinema”. A gente levantava ligeiro, se aprontava e ia ao cinema, aos bailes, dançava… Aqui, em Curitiba, ia a cinemas, ia muito a teatro também, pois sempre gostei.
José Wille – Com essa sensibilidade toda, a senhora era uma pessoa romântica?
Helena Kolody – Muito romântica e gostava de ler, sempre li demais. No começo, eram aqueles livros água-com-açúcar, mas, depois, também li ótimos livros. Por que não podia comprar livros, sempre fui uma frequentadora da Biblioteca Pública, da biblioteca dos clubes, das escolas, do Instituto de Educação… Sempre tirei livros de lá.
José Wille – A senhora nunca se casou. Foi uma vida solitária ou dar aulas, ter esse contato com jovens, acabou suprindo essa necessidade de companhia? A senhora sonhava em ter filhos?
Helena Kolody – Lógico, sonhava… Houve um tempo em que eu chorava por estar sozinha e, às vezes, tentei ver se gostava de outros, mas não… E ficou aquela coisa – o sonho é sempre mais bonito que uma realidade triste. Mas eu sempre transferi este meu instinto maternal, que é tão forte, para os meus irmãos, para os alunos… Outro dia, encontrei uma aluna que me impressionou demais, uma senhora de uns sessenta e tantos anos, que me abraçou e disse “A senhora me deu um carinho que minha mãe não deu”.
José Wille – Como professora em Ponta Grossa, a senhora teve uma grande paixão. Por que acabou não dando certo?
Helena Kolody – Porque eu nunca revelei. Ele era um homem importante, era diretor do ginásio, de família importante e já gostava de alguém. Às vezes, dançava comigo nos bailes, flertava comigo na rua, mas eu nunca demonstrei, porque eu tinha medo do ridículo. Como a Escola Normal foi transformada de primária em secundária, e as professoras de Ponta Grossa vieram tirar curso, na primeira turma que eu lecionei, elas eram mais velhas do que eu. E eu pensava “Como elas vão se divertir às minhas custas, se isto não der certo…!”. Então, tinha medo, tinha pudor, por isso nunca revelei.
José Wille – A senhora se reprimiu, nunca contou sobre sua paixão?
Helena Kolody – Ficou aquela paixão recolhida… Depois, vim embora e nunca mais soube dele. Os íntimos sabiam da minha paixão, mas os outros, não.
José Wille – Não se arrependeu depois?
Helena Kolody – Não, porque, no fundo, eu acho que ele não iria me amar, tanto que ele se casou com essa de quem gostava. Uma amiga sabia dessa paixão, a gente conversava sobre isto, mas para os outros nunca contei.
José Wille – E houve uma segunda paixão e até um noivado. Por que não deu certo?
Helena Kolody – Porque ele bebia. Era uma pessoa extraordinária, nós combinávamos muito bem, ele também era escritor, uma pessoa formidável, mas ele bebia e eu tive medo. Por que o alcoolismo é uma doença hereditária, ela se manifesta de outras formas, mas sempre é uma coisa que pode dar um filho anormal, não é? Justamente porque eu queria ter filhos, eu desmanchei. Ele disse “Teu mal é ser professora de biologia”. Na primeira vez que ele tomou aquele pileque e me telefonou falando com a língua arrastada, assim que ficamos noivos, desmanchamos sem brigar, mas ele disse “Se você casar com outro, eu morro”. E eu lhe disse que não ia casar com ninguém. E ele casou, os filhos deles sabiam que ele me queria bem… Mais tarde, tentou reatar, mas eu lhe disse “Não, você está casado, sua vida é outra, de modo que isso está para sempre acabado”.
José Wille – Foi uma opção de vida, afinal?
Helena Kolody – Foi uma opção de vida. Pelo conhecimento que eu tinha de biologia, se uma pessoa que tem tendência ao alcoolismo casa-se com uma mulher que não tem ninguém com este problema na família, pode ter filhos normais; mas, com a tendência que na minha família também tinha, eu poderia ter um filho alcoólatra ou anormal, podia ser débil mental, epiléptico, porque isso são coisas que vêm do alcoolismo.
José Wille – Não foi exatamente o que a senhora sonhava, mas a vida de professora acabou suprindo então…
Helena Kolody – Foi um período bonito, um período feliz aqueles dois meses de noivado. E tem certas coisas que a gente não sabe por quê, de onde vêm, mas ficam e marcam a gente. Quando eu morava na Carlos de Carvalho, alguém jogou para dentro do nosso jardim um ramo de rosas com um bilhete “Helena, como o perfume dessas rosas, o meu amor, puro, desinteressado e sincero”. Até hoje eu não sei quem fez isso…
José Wille – A senhora tem também um autocontrole bastante grande e, pelo jeito, uma visão prática das coisas, que a leva a tomar suas decisões.
Helena Kolody – Outra coisa que me ajudou muito é que eu tenho um profundo espírito religioso, creio na vida eterna… Vivo em função disso, vou à missa e comungo todos os domingos, respeito todas as religiões, porque eu acho que todo mundo vai a Deus. Tenho amigos de todas as religiões, protestantes, espíritas etc, mas cada um vai pelo seu caminho, não misturamos os caminhos. Eu sou profundamente religiosa e pratico a religião, e isso me ajuda.
José Wille – O amor à vida que está nas poesias é autêntica? A senhora sempre teve realmente?
Helena Kolody – Sempre senti, sempre mesmo! Sempre tive forças para enfrentar tudo e ir adiante.
José Wille – No trabalho com os estudantes, algumas experiências são interessantes de se contar. Por exemplo, em Jacarezinho, montando peças de teatro e envolvendo a comunidade em atividades culturais. E trazendo temas que, naquela época, muita gente estranhava.
Helena Kolody – Foi outra atividade em que a cidade se envolveu, porque os alunos foram para o jornal para preparar o público, porque, se fossem ver aquilo, já iam protestar “Como que ela vai até deixar a casa?”. Porque ela não queria ser uma boneca e queria evoluir. Quer dizer, aquela coisa que hoje existe tanto, que a mulher se iguala ao homem… Ela não queria ser um objeto, queria ter a possibilidade de desenvolver suas habilidades, suas qualidades.
(Nota do revisor: possível referência à personagem Nora, da peça “Casa de Bonecas, de Henrik Ibsen).
José Wille – E como professora, como era sua integração em pequenas cidades em que não conhecia ninguém?
Helena Kolody – Quando fui para Ponta Grossa, eu tinha 21 anos, e havia umas professoras que já estavam em fim de carreira, que vinham tirar a Escola Normal Secundária para conseguir uma aposentadoria melhor. O professor Erasmo, que fundou a escola, me convidou para uma festa e lá tinha um orador, também professor da escola, que se levantou, falou, falou… Então, ele disse “A mulher pontagrossense tem muito valor e muita cultura para dispensar qualquer valor e qualquer cultura de professora vinda de fora!”… Na minha cara, imagine! Tive vontade de entrar embaixo da mesa e chorar. Mas, depois, acabei tendo muitas amigas, que o são até hoje, porque a gente tem que aprender a passar por cima e continuar serenamente o trabalho que a gente idealiza.
José Wille – Hoje, dá para se dizer que sua família são estes estudantes com que mantém vínculo, que foram seus alunos no passado?
Helena Kolody – Sim. Mas, dessa primeira turma, muitos já morreram, porque eram mais velhos do que eu. Já com esses outros, que ainda estão aí e que foram de outras turmas, nunca tive problema nenhum, porque são mais moços do que eu, pois ainda fiquei quatro anos lá.
José Wille – A sua forma de trabalhar: a senhora diz que sonha as poesias. Muitas vezes, aparece a inspiração sem querer?
Helena Kolody – É isso! Eu tenho de sonhar, porque as poesias que eu faço por encomenda, por melhor que eu as faça, sente-se que são poesias sem vibração. E, quando passa a poesia na minha cabeça, a poesia sai com outra força.
José Wille – Muitas vezes, são reflexões e ensinamentos de vida transformados em poesia?
Helena Kolody – Sim! Em quase todas as minhas poesias, há um resquício de professora, essa sombra da professora, porque sempre tem uma mensagem, essa coisa que fica.
José Wille – Viver de literatura no Paraná, durante essa fase que a senhora enfrentou, não seria possível. Então, sempre se manteve como professora?
Helena Kolody – Até hoje, acho que não é possível viver de literatura. Mantive-me como professora e, depois que meu pai morreu – porque fez falta o ordenado dele – fiz o concurso de Inspetora Federal.
José Wille – Mas isso, mais tarde, foi uma garantia?
Helena Kolody – Sim! Tanto que agora eu ganho mais aposentadoria como inspetora do que como professora.
José Wille – Depois de uma vida inteira escrevendo, fazendo poesia, só bem mais tarde, a partir da década de 80, seu nome se tornou conhecido no país.
Helena Kolody – Começou em 1988, quando foi publicado pela editora Criar, de Roberto Gomes, o livro “Viagem no Espelho”, que é minha obra mais completa. Porque o que surgiu depois, por exemplo, foi um livro ucraniano, foram traduções em outras línguas das próprias poesias daqui, ou reuniões ou interpretações. Também houve “Sinfonia da Vida”, organizado pela Tereza de Rezende, mas são comentários de poesias que existem aqui.
José Wille – O trabalho do professor Roberto Gomes, como escritor e também como diretor da editora da Universidade Federal do Paraná, foi importante nessa projeção?
Helena Kolody – Ajudou! E foi ele que, pela editora da universidade, publicou o livro, que consta da relação que os alunos consultam. É por isso que tem saída e me procuram.
José Wille – Dá para dizer que aí começou a consagração como poeta, como escritora?
Helena Kolody – A partir da “Viagem no Espelho”, porque, antes disso, o meu era um nome local. Alguns me conheciam mais longe, porque eu mandava minhas poesias para o estrangeiro, mas era pouca gente. A partir daí, foi um conhecimento maior. Foi um total de vinte publicações.
José Wille – Ao deixar o trabalho como professora, a senhora em casa passou a escrever mais?
Helena Kolody – Não sei, porque, mas agora eu tenho medo de começar a escrever “batatinha quando nasce”, porque a gente vai perdendo o senso de crítica e, de repente, começa a escrever bobagem. Então, prefiro ficar nisso já faz muitos anos do que começar a escrever coisas de valor inferior. O último escrito foi “Reika”, que ainda é dos minipoemas.
José Wille – Muitas escolas, muitos centros de literatura levam seu nome.
Helena Kolody – Estive em Terra Boa há pouco tempo, e me receberam muito bem. Lá, o colégio estadual tem o meu nome. Tem também uma escola em Cambé e muitas bibliotecas por aí.
José Wille – Para quem tinha esse espírito sonhador, esse romantismo, essa vivacidade e toda essa inteligência, na convivência com a velhice, que lição fica, como a senhora a enfrenta?
Helena Kolody – É muito difícil… A pior coisa, fora os problemas de saúde, é a memória, que vai morrendo… Você quer lembrar de uma coisa e não consegue! Quando era jovem, lembrava tudo; agora não posso me lembrar de um lugar, do nome de um livro, de uma poesia. São as células cerebrais morrendo. Quando você lê e relê, passa aquele arquivo para outras células; se você não lê, elas se apagam e você não as tem mais…
José Wille – E há uma limitação de trabalho?
Helena Kolody – …de trabalho, a falta de memória que a velhice traz.
José Wille – A perda da referências das pessoas que a gente conhece, dos familiares.
Helena Kolody – Às vezes, não sei quem é. Encontro as pessoas, porque a gente se dá com tanta gente, mas eu tenho tomado cuidado, porque eu caso um com a mulher do outro, sabe como é…
José Wille – Mas as pessoas da família vão morrendo e parece que o mundo vai se modificando.
Helena Kolody – A gente morre um pouco com eles. Minha irmã e meu irmão morreram. Ainda tenho uma irmã em casa, que tem deficiência visual, mas tem uma memória… E ela lê, assim mesmo, com telelupa, essas revistas modernas e tudo.
José Wille – A senhora tem uma citação poética interessante sobre a volta ao local onde se viveu no passado e que não é mais a mesma coisa.
Helena Kolody – “Ilusório regressar pelos caminhos de agora aos dias que se apagaram. O rosto de ontem mudou. Lugar que foi, não é mais. O viver é diferente. Somente em nós, tudo existe e não se extingue jamais. Tempo guardado em lembranças, a saudade nos devolve todo o presente de outrora.”. E só quando você recorda parece que vê aquele lugar, o que aconteceu naquele tempo. Mas, se você for lá agora, nem o reconhece.
José Wille – De conversas, de coisas que acontecem com as pessoas – disso tudo surge inspiração para escrever, para fazer poesia?
Helena Kolody – Às vezes surgem, como agora há pouco tempo, quando encontrei uma ex-aluna na rua e ela me disse que estava com setenta e tantos anos, já aposentada da vida, mas tratando dos papéis para ir a Cancún. E eu lhe disse, de repente, “Se você acha a vida linda, gosta de agir, fazer planos, sorrir de seus desenganos e sabe sonhar ainda, é moça apesar dos anos”. Então ela disse “A senhora escreve para mim?”. E eu escrevi para ela.
José Wille – Desse trabalho todo, a senhora considera que houve uma realização talvez maior do que esperava quando jovem?
Helena Kolody – Nunca a gente chega lá. Eu tenho até uma poesia que diz “Não. Não era isso. O que eu queria dizer era tão alto e tão longe que nem consegui soletrar suas palavras-estrelas…”. Depois, fiz outra poesia: “Pintou estrelas no muro, e teve o céu ao alcance das mãos…”. Então, a gente tem que fazer o que pode, se não pode chegar aonde se quer.
José Wille – De tantos livros, quais a senhora considera mais importantes, quais são os trabalhos que marcaram nesse tempo todo?
Helena Kolody – A gente, no fundo, não considera nenhum, porque a gente sonha e o que sonha é muito maior do que aquilo que realiza. Os outros é que julgam “este está bom”. E eu, no fundo, acho que não cheguei lá, não consegui. Mas se os outros gostam das estrelas que eu pintei no muro, então eu faço as pazes com o livro.
José Wille – A senhora conta que teve problemas de saúde. Quando imaginava que ia morrer voltava a escrever?
Helena Kolody – Fiz, por exemplo, “A Correnteza”, em que selecionei todos os poemas publicados até a data.
José Wille – A senhora enfrentou momentos difíceis com a saúde. Já foram onze cirurgias… Como foram esses momentos?
Helena Kolody – A gente sempre pensa que está se despedindo da vida, e assim fui fazendo. Agora, estou com um calo nas costas, mas não quero operar.
José Wille – O sofrimento e a solidão também ajudam na criação da poesia?
Helena Kolody – Eu acho que sim, porque o fato de você contar faz com que você esqueça a dor que está sentindo. Há uma alegria em criar, mesmo que você não chegue aonde você quer, mesmo que você esteja voando torto. Você esquece seus problemas quando cria. Quando eu estou em estado de poesia, eu estou feliz, mesmo que eu não chegue lá.
José Wille – No Paraná, a senhora é vista como uma das figuras mais importantes naquilo que faz. E o Paraná, o que representa para a senhora?
Helena Kolody – Tudo! Tanto que, às vezes, querem me levar para outros lugares… Tenho sobrinhos que moram no Mato Grosso, em Goiás, em São Paulo, mas eu não quero sair daqui, porque amo o Paraná. Quero morrer aqui mesmo, apesar do clima que maltrata, pois nós temos num mesmo dia calor, frio e chuva, mas eu quero ficar aqui. Eu amo o Paraná!
José Wille – Depois de ter passado pelo campo e cidades do interior, a senhora vive hoje num apartamento, na região central de Curitiba. Como é a convivência?
Helena Kolody – É dura, porque onde eu moro é barulho noite e dia. A gente está enlatada! Até o sol quando nascia, eu via… Agora, construíram uns prédios altos, e eu só o vejo quando já são 11 horas da manhã. A gente fica mais ou menos emparedada. Isso é triste, mas pego um ônibus, saio um pouco, vou para fora e vejo a Curitiba que era.
José Wille – Sua irmã que mora com a senhora é a sua companheira do cotidiano.
Helena Kolody – Sempre! E ela, mesmo não enxergando, sai sozinha e passeia e anda. E há certas coisas que a gente vê – por exemplo, a praça Rui Barbosa, que fica em frente ao prédio onde moro, está tão bonita agora. Umas coisas a gente está perdendo; outras ganhando.
José Wille – Daquilo que escreveu, o que a senhora considera mais importante como mensagem em poesia, resumindo aquilo que foi sua vida, sua trajetória?
Helena Kolody – Talvez o poema “Dom”, de que o pessoal gosta muito. É assim: “Deus dá a todos uma estrela. Uns fazem da estrela um sol. Outros nem conseguem vê-la…”. E há tantos que, às vezes, não veem a sua estrela. E, de repente, descobrem que não a viam porque estavam olhando para a que não era sua.
José Wille – Como se explica essa sua memória, essa capacidade de lembrar poesias inteiras escritas há tanto tempo?
Helena Kolody – Não sei, é um mistério que não sei explicar. Acho que o próprio cérebro é uma coisa que você está sempre amassando, sempre usando… Se deixar de usar, morre. Assim, você está sempre pondo as células em atividade, porque, se adormecer, pode não acordar mais.
José Wille – E, ao mesmo tempo em que a senhora tem toda essa sensibilidade, tem autocontrole para falar desses assuntos, relembrando coisas importantes e coisas tristes com tranquilidade.
Helena Kolody – É que a gente tem de superar! Todo mundo tem seus sofrimentos, mas a gente sempre precisa saber superá-los.
.
.
.
.