Em uma entrevista gravada em 1997, a irmã do arcebispo Dom Paulo Evaristo Arns, a doutora Zilda Arns, contou a história da família. Leia abaixo:
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José Wille – Há 150 anos, a família Arns chegava ao Brasil…
Zilda Arns – Exatamente. Em 1848, meus bisavós e tataravôs, também por parte de pai e mãe, chegaram ao Brasil e se instalaram em Santa Catarina.
José Wille – E fundaram uma cidade.
Zilda Arns – É… Foram primeiro para São Martinho e depois meu pai, aos 18 anos, foi para o sul de Santa Catarina, logo depois de Criciúma, um pouco antes de Araranguá e fundou junto com dois amigos o município de Forquilhinha.
José Wille – Os imigrantes não podiam contar com o governo na época. Eles se organizavam por conta própria, com suas próprias comunidades. Como foi esse trabalho de instalação?
Zilda Arns – Sou a décima segunda de 13 irmãos e, portanto, não vivi os primeiros tempos, mas no meu tempo não se contava com o governo. Eu mal sabia que existia governo. Nós mesmos construímos a escola, a biblioteca pública, a igreja, a casa do padre e das irmãs. Tínhamos uma atividade comunitária muito intensa.
José Wille – E seus pais se dedicavam à agricultura, pecuária e comércio na cidade.
Zilda Arns – Indústria, fábrica de queijo, de banha e de outros, que depois se transformaram em uma cooperativa. Todos os colonos participavam do mesmo empreendimento.
José Wille – Como foi, para uma colônia alemã, a Segunda Guerra Mundial em Santa Catarina?
Zilda Arns – Eu era criança naquele tempo, mas nós sofremos muito, porque um tio meu, o tio Jacob Arns, um grande professor, foi preso por 9 meses só porque acharam algo de geografia alemã na gaveta da cozinha. E estávamos muito apavorados que pudessem prender meu pai. Nós falávamos sempre em alemão, mas, quando víamos uma pessoa estranha, tínhamos um código e começávamos a falar em português.
José Wille – Como era para uma criança, ser considerado um estrangeiro na sua própria pátria?
Zilda Arns – A gente era de origem alemã e os outros eram os brasileiros. Então, realmente era uma questão muito difícil, uma questão cultural que, aos poucos, foi se desfazendo. Nós viemos para Curitiba estudar, porque meus pais davam muito valor ao estudo e a gente foi incorporando a cultura brasileira.
José Wille – A música era uma tradição da família.
Zilda Arns – Nós tínhamos uma vivência familiar fortíssima. Todas as noites nos reuníamos para rezar e cantar a três, quatro vozes. E até hoje os irmãos, ainda 12 vivos, quando nos reunimos, sempre cantamos da mesma forma. Tínhamos uma tradição de música, pois todos nós tocávamos e cantávamos… Eram muito bonitas a vida familiar e a vida comunitária. A gente na escola aprendia flauta, participava de coral, esportes… Eu considero hoje que a escola que tínhamos era realmente um privilégio.
José Wille – Dos treze irmãos, seis foram para a carreira religiosa – até uma irmã adotiva também. Era muito forte a religião na família.
Zilda Arns – Eram valores culturais. Por exemplo, lembro-me que, quando era criança, a mamãe fazia pão e mandava levá-lo para a casa do padre, para as irmãs. Quando passavam visitas importantes, sempre iam a nossa casa. A religião ocupava um lado cultural muito grande – até hoje – e creio que é por isso que toda a família, não só os consagrados, é muito religiosa.
José Wille – Dom Paulo Evaristo Arns, seu irmão, que é cardeal de São Paulo, seguiu essa mesma trilha…
Zilda Arns – Ele é o quinto dos 13 irmãos, e é precedido por uma freira, e duas freiras irmãs de sangue o seguem. Mais tarde, uma senhora alemã em Porto Alegre morreu no parto e meu pai, com muita pena dos órfãos, adotou um casal e essa menina virou freira também.
José Wille – Existia também o incentivo para a carreira religiosa?
Zilda Arns – Não, eu creio que isso brotava. Até papai, muitas vezes, freava um pouco. Lembro da minha irmã mais velha, que queria estudar no colégio de freiras. Meu pai lhe disse que deveria completar 20 anos para saber se realmente queria seguir a vida religiosa. Então, ele não incentivava, mas sempre procurava realmente uma decisão muito consciente.
José Wille – Dom Paulo Evaristo Arns, principalmente no período de repressão no governo militar, teve um papel bastante importante como defensor dos direitos humanos dos perseguidos. A senhora com muita frequência ia a São Paulo, pois estava estudando. A senhora acompanhou esse trabalho do seu irmão?
Zilda Arns – Ele realmente foi um pastor para todas as pessoas, e as que mais sofreram são as que mais ele ajudou na época. Em 1977, eu fiz o curso de Saúde Pública e fiquei o ano inteiro na casa dele. Sempre voltava nos finais de semana para Curitiba, mas durante a semana estava lá e presenciei muitas mulheres entrando na residência dele, chorando e pedindo sua ajuda, pois o marido estava desaparecido e, às vezes, o filho também. E havia também senhoras argentinas, que vieram pedir socorro a ele pelo mesmo motivo. E ele sempre as atendia com calma, pois tinha muito diálogo e muita coragem. Ele foi ameaçado muitas vezes de morte, mas acredito que jamais pensou em deixar de atender aqueles que ele considerava como seus filhos nesse momento de perseguição política.
José Wille – Foi um importante negociador para essas pessoas que estavam desaparecidas e que poderiam estar sendo torturadas, presas. Ele tentava descobrir a localização dessas pessoas.
Zilda Arns – Há quatro anos, ele foi homenageado no Congresso e uma infinidade de deputados federais e senadores se referiu a Dom Paulo Evaristo Arns como aquele que “não os deixou serem presos ou conseguiu tirá-los da prisão”. O presidente Fernando Henrique também diz que lhe deve essa gratidão.
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